fernando coelho
Fernando Coelho. 60 anos. Professor reformado do Ensino Secundário. Exerceu funções técnico-pedagógicas no Ministério da Educação. Membro fundador do Sindicato de Poesia de Braga. Vive em Braga.
Gostaria de saber qual é a tua opinião acerca dos hábitos de leitura nos jovens da atualidade. Será que leem o suficiente, ou, pelo contrário, os hábitos ficarão aquém daquilo que seria o expectável?
Aquilo que é a minha experiência e que tem a ver com o período em que eu estive ligado às escolas, é que nos jovens (e estou aqui a falar dos jovens a partir dos 13, 14 anos, até mais ou menos aos 17, idades que corresponderão ao final do básico e início do secundário) se registam realidades muito diversas. A minha perceção é que a origem social dos alunos determina bastante os hábitos de leitura, ainda que isso não queira dizer muito, ou queira dizer só uma parte, ou seja, os alunos que têm em casa contacto com livros, apareciam, no tempo em que eu era professor, de quando em quando com livros, ou iam à biblioteca ler uma história, um livro, ou até o jornal A Bola, mas também havia outros que não tinham hábitos de leitura e iam mais à biblioteca da escola para jogar jogos de tabuleiro ou para ir para à internet. Aqui, a leitura dos livros ficava bastante prejudicada, ainda que houvesse vários alunos de classes sociais mais baixas, desfavorecidas, que embora não tivessem acesso a livros em casa, também gostavam de ler. Não quer dizer, contudo, que aqueles que tinham ou têm, na atualidade, acesso a livros em casa fossem, ou sejam todos leitores, como é evidente. O que se notava é que havia já alguns alunos com hábitos de leitura e que, por isso, iam mais além na leitura e interpretavam melhor, porque uma das dificuldades que eu notava, de uma forma genérica, era mais dificuldade de interpretação em alunos de camadas sociais mais desfavorecidas.
O que é que, na tua opinião, poderá estar, nos dias de hoje, por trás da falta de motivação para a leitura, para além do aspeto social e familiar que acabaste de referir?
É bastante perceptível, e todos sabemos, que o telemóvel, o computador, as redes sociais em geral roubam imenso espaço à leitura. As tecnologias são muito mais atrativas e o jovem tem ali a informação sempre à mão. Contudo não são necessariamente as grandes responsáveis da ausência de leitura. De uma forma genérica, talvez. Mas quem já traz hábitos de leitura, embora tendo menos tempo para a leitura porque o gasta nas redes sociais, tendo algum gosto pela leitura, lê sempre, nem que seja um pouco.
Em segundo lugar vem a escola. Há escolas que têm projetos maravilhosos ligados à leitura, há projetos fantásticos. Mas há também, e sobretudo no ensino secundário, outro aspeto importante… os alunos acabam o básico e iniciam o secundário, em que o ensino passa a ser uma máquina trituradora do tempo, em que os professores se limitam a dar o programa, que é extenso, e a preparar os alunos para os exames. E portanto, o tempo, se havia algum para a leitura, desaparece… e o pouco que resta vai para as redes sociais e para os trabalhos de casa. E falta aqui um trabalho que tem a ver com o sistema de ensino que temos, que valoriza o chamado mérito. E o mérito são as notas altas para entrar na faculdade, num curso superior. Esta é uma lógica que não é de formação dos alunos enquanto pessoas, mas que é sim uma lógica de preparação, uma técnica para fazer exames nacionais. E a partir do momento em que é o mercado que regula o sistema de ensino, este tem de preparar o aluno para aquilo que o mercado pede. O sistema pede produção, pede lucro, e é para isso que a escola trabalha.
Sendo assim, esta situação de falta de hábitos de leitura acaba por agudizar-se no ensino secundário?
Sim, esta realidade agudiza-se no secundário, depois de o aluno terminar o ensino básico. Mesmo nas escolas que têm bons projetos de leitura para os seus alunos (e há muitas no nosso país, sendo também verdade que há algumas que deixam muito a desejar), há uma tendência generalizada de deixar cair esses projetos no secundário. Esse trabalho é quase sempre feito ao nível do ensino básico, até porque a própria cultura docente no básico é outra. O professor do ensino básico tem um “cultura” diferente da do professor estritamente de secundário, ainda que atualmente já haja uma mobilidade entre terceiro ciclo e secundário, porque as habilitações dos docentes são as mesmas. Nas escolas onde funcionam o ensino básico e secundário conjuntamente, há uma maior transversalidade e os projetos ligados à leitura, muitas vezes, incluem também os alunos do secundário. Mas no geral, estes acabam por ter menos tempo para outras atividades, que não sejam o estudo das disciplinas curriculares que dizem respeito ao programa e à preparação para os exames nacionais. Nos três anos de secundário perde-se imenso. Os alunos que traziam algum “balanço” do ensino básico no que à leitura diz respeito, que estavam habituados a uma relação com os livros e entravam em projetos… tudo isso desaparece no secundário, à parte a área de Humanidades, em que eles têm Literatura Portuguesa, e em que são obrigados a fazer algumas leituras. Mas, o que eu vejo é que, na maioria dos casos, as leituras ficam-se por aqueles livros de leitura obrigatória, “Os Maias”, “O memorial do convento”, etc. Os alunos ficam-se muitas vezes por estas leituras e não diversificam.
E se compararmos os dias de hoje com a época em que eras estudante, lê-se mais ou menos?
Se compararmos os dias de hoje com a época em que eu era aluno, eu acho que hoje se lê bastante mais.
É essa a tua perceção?
É esa a minha perceção, sim.
E achas que isso se deve a que fatores?
Deve-se a várias coisas. Desde logo à própria dinâmica das escolas, que começaram a olhar mais para a questão da leitura. E também às famílias. Apesar das grandes dificuldades que algumas continuam a ter, com o fortalecimento da democracia e das liberdades, ao longo dos anos, a classe média foi-se fortalecendo, tem mais poder de compra. O fosso já não é tão grande entre as várias classes sociais, e portanto mais famílias tiveram acesso à leitura, e os filhos por conseguinte também. E depois também há a questão da escolaridade obrigatória. Eu sou do tempo em que a escolaridade obrigatória eram 4 anos. Eu acho, por isso, que esta melhoria se deve, por um lado, a uma maior escolarização, e por outro lado, a um maior engrossar da classe média, que tem acesso a esses bens que não havia antes, visto que a pobreza era bastante maior do que hoje.
O mais preocupante, no entanto, neste momento, é a questão das redes sociais, das tecnologias de comunicação que retiram imenso tempo ao jovem. Aparentemente, a informação está toda ali, o jovem não precisa de consultar outras vias, o que, como bem sabemos, não é bem assim.
O que é que tu achas que pode ser feito para inverter esta tendência tão negativa?
Um dos grandes problemas que eu sentia e sinto é que muitos dos jovens têm dificuldade em interpretar o que leem. Aquilo que nós não dominamos, recusamos. Por exemplo, não se vai à ópera, porque a ópera é uma seca, não se vai, porque não se percebe o que é que aquilo pede, quem a faz, que competências é que tem que ter e que trabalho está ali realizado, e vai-se muito mais depressa ver ali um “stand up comedy”, em que não se tem de estar a pensar o que é que aquele espetáculo quer dizer (e quanto mais brejeiro for, mais atrativo se torna) Respondendo à tua pergunta: o que é que se pode fazer? Não quero ser pessimista, e penso desde logo no papel da família, apesar da família ser uma estrutura cada vez mais indefinida, que continua a existir obviamente, mas com contornos muito diversos. Independentemente disso, existe a vinculação de pessoas que vivem no mesmo espaço e desde logo tudo começa aí, na família, na educação. Esses hábitos de leitura vêm desde pequeninos, porque quando vamos deitar as criancinhas e lhes contamos uma história, elas gostam imenso de ouvir a história, se mais não for pela música das palavras, e assim começam cedo a pegar em livros, a manuseá-los e a ver as imagens, e depois o pai ou a mãe pega no livro e começa a contar a história. É a partir daí que o livro passa a ser um objeto, um objeto de afetos, porque lhe diz coisas de que gostou para adormecer. E as tecnologias… Já sabemos que elas estão nas famílias, estão em casa e é de tenra idade que as famílias deveriam impor regras de acesso à sua utilização. Haver um tempo de estudo, um tempo para estar com os pais, um tempo para o jantar, sem tecnologias, fixando um limite de tempo para essas coisas. Haver uma espécie de negociação, e é assim que os hábitos se criam. Se o jovem gostar de leitura, vai querer ter um tempo para isso.
Falaste do papel das famílias, e qual será então o papel das escolas em todo esse processo de criação de hábitos de leitura?
Eu penso que aquelas que têm já bons projetos de implementação de leitura devem continuar esse trabalho e tentar, na medida do possível, reforçá-lo. Muitas delas desenvolvem já um trabalho muito meritório.
E voltando à questão do sistema educativo, da lecionação propriamente dita, o que é que deve ser feito, na tua opinião?
De facto temos um ensino secundário com uma carga horária tão forte, com uma quantidade de matérias imensa que os alunos são obrigados a receber. Não falo aqui tanto do conhecimento que isso lhes dá, mas da técnica de trabalhar esse conhecimento, para poderem responder a perguntas de um exame… em pouco tempo esquecem tudo. E portanto eu acho que deveria haver um tempo dedicado à formação pessoal, uma disciplina que trabalhasse a pessoa enquanto ser humano. Uma das características dos dias de hoje, e que grassa, é este individualismo instalado. Nas faixas etárias mais novas, as crianças brincam cada ver menos umas com as outras e têm facilidade de comunicação num sentido mais solitário, o que parece um contra-senso, porque as tecnologias da comunicação lhes permitem comunicar “textualmente”, sem ser necessária a presença física. A leitura humaniza, torna-nos menos individualistas, e por isso, no próprio seio das comunidades educativas se deveriam trabalhar estas questões tão importantes. A literatura conta histórias de vida, experiências, ficcionais ou não, e que permitem criar uma competência moral e cultural, que ajuda inclusive o jovem, quando este utiliza as tecnologias da comunicação, a discernir melhor a informação que ali se encontra. Porque um dos problemas é ter-se a ilusão de que todos temos acesso à informação, mas, na verdade, só alguns é que a sabem utilizar. Aí sou optimista. A leitura teria aqui a função de dar ferramentas ao jovem, para ele saber usar com discernimento e em seu proveito, as tecnologias de comunicação.
Resumindo, eu diria só que está nas famílias uma grande parte da responsabilidade na criação de hábitos de leitura. E eu não sei…esta é também a minha dúvida…as famílias são constituídas por seres humanos, também eles contaminados pelas tecnologias. Muitas vezes está a família à mesa e estão os adultos ao telemóvel. Os próprios filhos dizem aos pais “Guarda o telemóvel, pai!” ou “mãe!”. Agora penso que a melhoria das condições materiais das pessoas pode de algum modo ajudar nesta questão da leitura, se houver preocupação e empenho por parte dos progenitores. Numa perspetiva otimista, eu diria que é a família, em casa, a principal responsável em criar os hábitos de leitura em casa, e é depois a escola que deve continuar o seu bom trabalho e não esgotar os projetos de leitura quando o aluno inicia o ensino secundário. Até porque é nesta idade que o raciocínio é mais abstrato e permite outros tipos de leitura mais complexa, permitindo a compreensão de conceitos mais abstratos, mais filosóficos, científicos, etc. Estive no ensino durante 40 anos, e fui sempre da opinião que a escolaridade básica não tem de ter exames, nem reprovações; não se pode obrigar a pessoa a frequentar a escola e depois reprová-la. A escola não deve ser uma máquina de exclusão, uma indústria… é claro que há outras questões de ordem cultural, social e familiar que a escola muitas vezes não consegue resolver, mas a sociedade deveria organizar-se para isso.
Gostaria de saber qual é a tua opinião acerca dos hábitos de leitura nos jovens da atualidade. Será que leem o suficiente, ou, pelo contrário, os hábitos ficarão aquém daquilo que seria o expectável?
Aquilo que é a minha experiência e que tem a ver com o período em que eu estive ligado às escolas, é que nos jovens (e estou aqui a falar dos jovens a partir dos 13, 14 anos, até mais ou menos aos 17, idades que corresponderão ao final do básico e início do secundário) se registam realidades muito diversas. A minha perceção é que a origem social dos alunos determina bastante os hábitos de leitura, ainda que isso não queira dizer muito, ou queira dizer só uma parte, ou seja, os alunos que têm em casa contacto com livros, apareciam, no tempo em que eu era professor, de quando em quando com livros, ou iam à biblioteca ler uma história, um livro, ou até o jornal A Bola, mas também havia outros que não tinham hábitos de leitura e iam mais à biblioteca da escola para jogar jogos de tabuleiro ou para ir para à internet. Aqui, a leitura dos livros ficava bastante prejudicada, ainda que houvesse vários alunos de classes sociais mais baixas, desfavorecidas, que embora não tivessem acesso a livros em casa, também gostavam de ler. Não quer dizer, contudo, que aqueles que tinham ou têm, na atualidade, acesso a livros em casa fossem, ou sejam todos leitores, como é evidente. O que se notava é que havia já alguns alunos com hábitos de leitura e que, por isso, iam mais além na leitura e interpretavam melhor, porque uma das dificuldades que eu notava, de uma forma genérica, era mais dificuldade de interpretação em alunos de camadas sociais mais desfavorecidas.
O que é que, na tua opinião, poderá estar, nos dias de hoje, por trás da falta de motivação para a leitura, para além do aspeto social e familiar que acabaste de referir?
É bastante perceptível, e todos sabemos, que o telemóvel, o computador, as redes sociais em geral roubam imenso espaço à leitura. As tecnologias são muito mais atrativas e o jovem tem ali a informação sempre à mão. Contudo não são necessariamente as grandes responsáveis da ausência de leitura. De uma forma genérica, talvez. Mas quem já traz hábitos de leitura, embora tendo menos tempo para a leitura porque o gasta nas redes sociais, tendo algum gosto pela leitura, lê sempre, nem que seja um pouco.
Em segundo lugar vem a escola. Há escolas que têm projetos maravilhosos ligados à leitura, há projetos fantásticos. Mas há também, e sobretudo no ensino secundário, outro aspeto importante… os alunos acabam o básico e iniciam o secundário, em que o ensino passa a ser uma máquina trituradora do tempo, em que os professores se limitam a dar o programa, que é extenso, e a preparar os alunos para os exames. E portanto, o tempo, se havia algum para a leitura, desaparece… e o pouco que resta vai para as redes sociais e para os trabalhos de casa. E falta aqui um trabalho que tem a ver com o sistema de ensino que temos, que valoriza o chamado mérito. E o mérito são as notas altas para entrar na faculdade, num curso superior. Esta é uma lógica que não é de formação dos alunos enquanto pessoas, mas que é sim uma lógica de preparação, uma técnica para fazer exames nacionais. E a partir do momento em que é o mercado que regula o sistema de ensino, este tem de preparar o aluno para aquilo que o mercado pede. O sistema pede produção, pede lucro, e é para isso que a escola trabalha.
Sendo assim, esta situação de falta de hábitos de leitura acaba por agudizar-se no ensino secundário?
Sim, esta realidade agudiza-se no secundário, depois de o aluno terminar o ensino básico. Mesmo nas escolas que têm bons projetos de leitura para os seus alunos (e há muitas no nosso país, sendo também verdade que há algumas que deixam muito a desejar), há uma tendência generalizada de deixar cair esses projetos no secundário. Esse trabalho é quase sempre feito ao nível do ensino básico, até porque a própria cultura docente no básico é outra. O professor do ensino básico tem um “cultura” diferente da do professor estritamente de secundário, ainda que atualmente já haja uma mobilidade entre terceiro ciclo e secundário, porque as habilitações dos docentes são as mesmas. Nas escolas onde funcionam o ensino básico e secundário conjuntamente, há uma maior transversalidade e os projetos ligados à leitura, muitas vezes, incluem também os alunos do secundário. Mas no geral, estes acabam por ter menos tempo para outras atividades, que não sejam o estudo das disciplinas curriculares que dizem respeito ao programa e à preparação para os exames nacionais. Nos três anos de secundário perde-se imenso. Os alunos que traziam algum “balanço” do ensino básico no que à leitura diz respeito, que estavam habituados a uma relação com os livros e entravam em projetos… tudo isso desaparece no secundário, à parte a área de Humanidades, em que eles têm Literatura Portuguesa, e em que são obrigados a fazer algumas leituras. Mas, o que eu vejo é que, na maioria dos casos, as leituras ficam-se por aqueles livros de leitura obrigatória, “Os Maias”, “O memorial do convento”, etc. Os alunos ficam-se muitas vezes por estas leituras e não diversificam.
E se compararmos os dias de hoje com a época em que eras estudante, lê-se mais ou menos?
Se compararmos os dias de hoje com a época em que eu era aluno, eu acho que hoje se lê bastante mais.
É essa a tua perceção?
É esa a minha perceção, sim.
E achas que isso se deve a que fatores?
Deve-se a várias coisas. Desde logo à própria dinâmica das escolas, que começaram a olhar mais para a questão da leitura. E também às famílias. Apesar das grandes dificuldades que algumas continuam a ter, com o fortalecimento da democracia e das liberdades, ao longo dos anos, a classe média foi-se fortalecendo, tem mais poder de compra. O fosso já não é tão grande entre as várias classes sociais, e portanto mais famílias tiveram acesso à leitura, e os filhos por conseguinte também. E depois também há a questão da escolaridade obrigatória. Eu sou do tempo em que a escolaridade obrigatória eram 4 anos. Eu acho, por isso, que esta melhoria se deve, por um lado, a uma maior escolarização, e por outro lado, a um maior engrossar da classe média, que tem acesso a esses bens que não havia antes, visto que a pobreza era bastante maior do que hoje.
O mais preocupante, no entanto, neste momento, é a questão das redes sociais, das tecnologias de comunicação que retiram imenso tempo ao jovem. Aparentemente, a informação está toda ali, o jovem não precisa de consultar outras vias, o que, como bem sabemos, não é bem assim.
O que é que tu achas que pode ser feito para inverter esta tendência tão negativa?
Um dos grandes problemas que eu sentia e sinto é que muitos dos jovens têm dificuldade em interpretar o que leem. Aquilo que nós não dominamos, recusamos. Por exemplo, não se vai à ópera, porque a ópera é uma seca, não se vai, porque não se percebe o que é que aquilo pede, quem a faz, que competências é que tem que ter e que trabalho está ali realizado, e vai-se muito mais depressa ver ali um “stand up comedy”, em que não se tem de estar a pensar o que é que aquele espetáculo quer dizer (e quanto mais brejeiro for, mais atrativo se torna) Respondendo à tua pergunta: o que é que se pode fazer? Não quero ser pessimista, e penso desde logo no papel da família, apesar da família ser uma estrutura cada vez mais indefinida, que continua a existir obviamente, mas com contornos muito diversos. Independentemente disso, existe a vinculação de pessoas que vivem no mesmo espaço e desde logo tudo começa aí, na família, na educação. Esses hábitos de leitura vêm desde pequeninos, porque quando vamos deitar as criancinhas e lhes contamos uma história, elas gostam imenso de ouvir a história, se mais não for pela música das palavras, e assim começam cedo a pegar em livros, a manuseá-los e a ver as imagens, e depois o pai ou a mãe pega no livro e começa a contar a história. É a partir daí que o livro passa a ser um objeto, um objeto de afetos, porque lhe diz coisas de que gostou para adormecer. E as tecnologias… Já sabemos que elas estão nas famílias, estão em casa e é de tenra idade que as famílias deveriam impor regras de acesso à sua utilização. Haver um tempo de estudo, um tempo para estar com os pais, um tempo para o jantar, sem tecnologias, fixando um limite de tempo para essas coisas. Haver uma espécie de negociação, e é assim que os hábitos se criam. Se o jovem gostar de leitura, vai querer ter um tempo para isso.
Falaste do papel das famílias, e qual será então o papel das escolas em todo esse processo de criação de hábitos de leitura?
Eu penso que aquelas que têm já bons projetos de implementação de leitura devem continuar esse trabalho e tentar, na medida do possível, reforçá-lo. Muitas delas desenvolvem já um trabalho muito meritório.
E voltando à questão do sistema educativo, da lecionação propriamente dita, o que é que deve ser feito, na tua opinião?
De facto temos um ensino secundário com uma carga horária tão forte, com uma quantidade de matérias imensa que os alunos são obrigados a receber. Não falo aqui tanto do conhecimento que isso lhes dá, mas da técnica de trabalhar esse conhecimento, para poderem responder a perguntas de um exame… em pouco tempo esquecem tudo. E portanto eu acho que deveria haver um tempo dedicado à formação pessoal, uma disciplina que trabalhasse a pessoa enquanto ser humano. Uma das características dos dias de hoje, e que grassa, é este individualismo instalado. Nas faixas etárias mais novas, as crianças brincam cada ver menos umas com as outras e têm facilidade de comunicação num sentido mais solitário, o que parece um contra-senso, porque as tecnologias da comunicação lhes permitem comunicar “textualmente”, sem ser necessária a presença física. A leitura humaniza, torna-nos menos individualistas, e por isso, no próprio seio das comunidades educativas se deveriam trabalhar estas questões tão importantes. A literatura conta histórias de vida, experiências, ficcionais ou não, e que permitem criar uma competência moral e cultural, que ajuda inclusive o jovem, quando este utiliza as tecnologias da comunicação, a discernir melhor a informação que ali se encontra. Porque um dos problemas é ter-se a ilusão de que todos temos acesso à informação, mas, na verdade, só alguns é que a sabem utilizar. Aí sou optimista. A leitura teria aqui a função de dar ferramentas ao jovem, para ele saber usar com discernimento e em seu proveito, as tecnologias de comunicação.
Resumindo, eu diria só que está nas famílias uma grande parte da responsabilidade na criação de hábitos de leitura. E eu não sei…esta é também a minha dúvida…as famílias são constituídas por seres humanos, também eles contaminados pelas tecnologias. Muitas vezes está a família à mesa e estão os adultos ao telemóvel. Os próprios filhos dizem aos pais “Guarda o telemóvel, pai!” ou “mãe!”. Agora penso que a melhoria das condições materiais das pessoas pode de algum modo ajudar nesta questão da leitura, se houver preocupação e empenho por parte dos progenitores. Numa perspetiva otimista, eu diria que é a família, em casa, a principal responsável em criar os hábitos de leitura em casa, e é depois a escola que deve continuar o seu bom trabalho e não esgotar os projetos de leitura quando o aluno inicia o ensino secundário. Até porque é nesta idade que o raciocínio é mais abstrato e permite outros tipos de leitura mais complexa, permitindo a compreensão de conceitos mais abstratos, mais filosóficos, científicos, etc. Estive no ensino durante 40 anos, e fui sempre da opinião que a escolaridade básica não tem de ter exames, nem reprovações; não se pode obrigar a pessoa a frequentar a escola e depois reprová-la. A escola não deve ser uma máquina de exclusão, uma indústria… é claro que há outras questões de ordem cultural, social e familiar que a escola muitas vezes não consegue resolver, mas a sociedade deveria organizar-se para isso.